quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

(Des)Razão

Pensar que daquele grupo apenas nós dois sobrevivemos, eu e Jorge. Éramos seis, juntos, na mesma situação, com as mesmas perspectivas ou falta delas. Contávamos as marcas, as feridas que tivemos, muitas reais e as maiores delas, supra-reais, frutos do próprio sofrimentos e criadas pelo cérebro para atribuir ao sofrimento inexplicável uma dose de realismo.
 Maria, a mais linda, era a que já havia se desprendido dos vínculos, era o ser mais solitário que conheci, a solidão dela era forjada, intencional, ela decidiu se afastar do mundo, criando uma prisão mental inviolável, os vínculos de afeto não existiam mais, mesmo assim, ela era impecavelmente doce e gentil comigo, talvez tivesse me amado naqueles meses...  Morreu, num ato intencional, calculado. Lucas, de alegria contagiante, de histórias e aventuras incríveis, que até agora não sei se fruto de sua imaginação, mesmo assim, teve o crédito por ter tamanha imaginação e talento para contar histórias tão bem. Foi de um modo misterioso, em alguns momentos ele se esquecia de tudo, o que deve ter sido a causa da sua partida, esqueceu-se de si, assim, também foi esquecido por todos, como um louco andarilho.
Rogério, o mais inteligente, ou ao menos o que conhecia mais coisas diferentes e falava muito bem dos mais diversos assuntos, era formado em Direito. Algumas vezes uma fúria incontrolável tomava conta dele, ficava inquieto e começava a olhar a todo lugar xingando e gritando como se estivesse discutindo com seres invisíveis aos olhos de todos nós. Nessas situações, sempre era amarrado, às vezes relutava muito, então, espancavam-no um pouco até ele se entregar. Acho que tinha algo real, físico, destruindo o seu emocional, mas teve um ataque cardíaco, pouco tempo depois de sair dali.
Roberto não estava ali exatamente pelas mesmas razões, sua tristeza era fruto de um diagnóstico, tinha câncer e não tinha muito tempo de vida. Já tinha desistido e não saia do quarto, até que me viu. Disse que eu era a única razão para ele se levantar e voltar a comer. Tornamo-nos amigos, ele passou a estar comigo em toda oportunidade, nas refeições sentava-se ao meu lado, queria saber tudo sobre mim e sempre dizia que eu era incrível a cada coisa que eu falava. Saiu logo, estava bem para nossos critérios. Quando saí, ele me procurou, disse que já não tinha amigos aqui fora e que eu era a única amiga e a melhor que ele já teve, achei que isso não poderia ser verdade e que houvesse uma outra intenção. Mas a única intenção era que gostaria de viver os minutos restantes de sua vida contada em dias da maneira mais real e afetuosa possível. Só soube que ele tinha um câncer terminal depois de dois meses que fora internado em um hospital da capital, ainda lá, ele me ligava com freqüência, dizendo com entusiasmo que estava bem e logo voltaria. Nunca mais voltou.
Jorge, caminha agora cambaleando, entorpecido de medicamentos, às vezes dorme nas ruas, e quando eu o encontro, repete as mesmas coisas que sempre repetia e que todos sempre diziam serem mentiras. Aparentemente ele criou uma imagem de si, criou uma história, acredita nela, mas não se reconhece mais como é, não se vê como é, ele é um estranho para si mesmo, acho que a verdade sobre sua história se perdeu para sempre, certamente porque era uma verdade dolorosa demais, e o cérebro possui muitos ardis.
Minha imaginação me fez sobreviver também, mas poderia ter me matado, nunca sabemos a linha divisória, o limite de tudo, o bem e o mal, a vida e morte. Acho que estou viva, porque sou boa nisso, porque tenho sorte, porque amo, enfim, não se pode explicar a todo o momento o porquê. 

2 comentários:

  1. "Acho que estou viva porque sou boa nisso" explica alguma coisa.
    Explica a mim, também.
    Tu escreve lindo. Olha pra cima, também.
    Beijo.

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  2. Acho que somos boas nesse negócio de vida, mas ela em todas as dimensões, vc consegue melhor do que eu, vc enxerga mais longe. Olhar para cima, olhar para fora, é, esse é meu maior desafio. Beijo

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